Quando dois anos
atrás veio à tona “O aniversário da morte”,
o mundo intelectual e mesmo o dos mortais comuns foi surpreendido por um novo
escritor culto, criativo, detalhista. Viu-se ali um estilo linguístico incomum
e sofisticado pelos padrões atuais. Dr. Islande Braga criou um modo próprio,
uma ficção doméstica num mundo aparentemente singelo e sem novidades de relevo.
Mas ele pontificou por escrever coisas velhas com roupagem nova, intrépida e turbulenta.
Conhecedor a fundo
desse novo escritor, com quem convivo há décadas, ansiava por vê-lo no campo da
literatura de maior envergadura e profundidade, pois sua vasta erudição já se
escancarava aos olhos de todos que com ele convivem.
Agora vem ao prelo
esta segunda obra: Os filmes do Cine
Hamlet. A começar pelo título, já se antevia que surgia aí uma nova obra
prima. A linguagem utilizada simplificou bastante, facilitando com isso o fácil
acesso a um número maior de leitores, sem perder, no entanto, a beleza e a
precisão dos vocábulos empregados.
Dentro de um ambiente
adulto e juvenil de uma comuna distante, situada quem sabe no que se poderia
qualificar de fim do mundo, o autor
cria uma história romântica e de ficção, lançando mão de personagens que eram,
e talvez ainda o sejam, característicos de pequenas cidades, perdidas pelo
sertão brasileiro, em especial nos rincões longínquos das Minas Gerais.
Trata-se de uma
ficção atraente, onde os protagonistas caracterizam o status dominante no
interior, com suas tradições, seus medos, suas superstições. Estes vão ganhando
corpo, numa narrativa romântica com desfechos inesperados, onde o leitor se
prende desde o início com inusitado interesse.
Onde está a
realidade, onde está a ficção? Frequentemente no corpo da narrativa, perde-se a
noção dessa diferença, pois uma curiosidade crescente vai inebriando aquele
que, com redobrado interesse, é envolvido naquele mundo à parte. A tal ponto se
eleva essa alçada de voo do leitor, que ele começa a confundir a realidade e a
plausibilidade com a fantasia.
As descrições do
autor são precisas e, por que não dizer, brilhantes. Surgem as personalidades
dos “doidos”, escondidos atrás de inteligências desfocadas que eram comuns
circulando nas ruas dos lugarejos; alguns, à guisa de intelectuais, eram mentes
talentosas que, após algum estudo básico, tiveram seus estudos interrompidos
pela impossibilidade financeira ou emocional de se distanciarem para centros afastados,
a fim de prosseguirem suas jornadas culturais. Assim, retidos em seus vilarejos
de origem, se frustravam por não saberem se expressar com objetividade nem encontrar
eco a eventuais pretensões mais avançadas. A par desses, alguns protagonistas,
representados por raros expoentes financeiros ou intelectuais, para os padrões
da época, como o dono do cinema, têm sua verve cultural e literária subjacente
explorada com maestria pelo autor. Inspirado, ele descreve com perfeição os
arroubos desses personagens, alguns dos quais, como autodidatas, se
transformavam em sumidades naqueles locais. A pouca cultura local, mais as
almas singelas daqueles habitantes, geralmente os sustentavam ao ensejo de uma
recompensa indireta pelos dons que expressavam, ilustrando aquelas vidas
apáticas e carentes de maiores expressões de cultura, vigentes nas capitais ou
outras sociedades mais evoluídas. Assim, dentro dos diálogos comuns em um bar,
em uma conversa de rua, surgem as citações culturais, filosóficas e literárias.
E emergem assim mensagens subliminares preciosas, lançadas pelo escritor. Este
não se contenta com a superficialidade que, em geral, permeia narrativas das
novas obras de ficção que aparecem com frequência em novos lançamentos do
gênero. Desta forma, o ledor é brindado simultaneamente com a descrição
novelesca em curso e com inserções culturais diretas.
O clima de mistério envolve
a narrativa; os objetos não são rebuscados, são simples, surgem das crendices e
dos medos acumulados naquelas décadas da segunda metade do século vinte; as
assombrações, os zumbis, os vampiros! Na prática, pouco mudou com o advento da
tecnologia intensiva do novo milênio: nessas fantasiosas aventuras modernas surgem
evidentes exacerbações e sortilégios dos “novos entes dotados de poderes
excepcionais” de Harry Potter, por
exemplo.
O próprio autor, no
entanto, quebra a magia das personagens sobre-humanas dos seres comuns ali
revelados, que exercem seu poder sobre os expectadores de suas ações
inesperadas, ao desmistificar seus encantamentos e efeitos. Ao exposto milagre da secreção do caixão de uma
defunta, segue-se o pestilento e nauseabundo odor desse líquido. O vasto
conhecimento fisiológico e médico do autor permite a emissão de explicações
simples e objetivas do organismo humano, especialmente ao descrever as reações
do organismo a medicamentos diversos, isto tudo em uma linguagem que poderia
sem dúvida partir de um leigo mais atento.
Os espectros
personificados pelas superstições, alguns realmente existentes, mas
supostamente portadores de maus agouros ou terrificantes, como morcegos e
vampiros, outros produtos das crendices e temores como demônios e zumbis, vão
aparecendo aos poucos e entrando em cena, repentinamente ou após anunciados e
previstos. Mas eles não prevalecem em suas intenções nocivas à comunidade,
apesar de algumas ações deletérias e intentadas devastações. O autor os enreda
numa trama onde acabam se encontrando, antes de perpetrarem suas maléficas
intenções destrutivas, e vão se devorando uns aos outros, mesmo aí surgindo
dificuldades como as carnes duras dos vampiros que não serviam de alimento aos zumbis.
Entram também em cena
outros personagens, provavelmente inéditos em obras do gênero, mas tão comuns
nos medos que assombravam, e talvez ainda assombrem, crianças e até adultos: os
esqueletos.
Estes, após
circularem livremente pelas ruas, querem voltar ao meio que lhes parece
apropriado, ou seja, sepulturas adequadas, das quais haviam sido indevidamente
privados.
Ressalte-se a
introdução dos adolescentes na vida adulta, magistralmente descrita desde o seu
despertar, evoluindo para os primeiros contatos superficiais do jovem com o
sexo feminino e atingindo seu ápice na concretização da primeira cópula.
O meio literário e a
comunidade recebem assim uma obra valiosa, que não fica restrita a um campo de
leitores mais dotados, mas atinge todas as faixas etárias e culturais. Cada usuário
poderá explorar com mais ênfase a vertente que mais lhe aprouver. O mais
ambicioso se deliciará predominantemente na riqueza e inteligência literárias,
na fluência e beleza das descrições pormenorizadas. Já o público juvenil ou
menos culto, maior conhecedor de Stephenie
Meyer e J. K. Rowling e das peripécias
de seus livros, poderá se embevecer no lado novelesco, misterioso e
imprevisível da trama em curso.
João F.
Nolasco